ENVOLVIDO PELOS TENTÁCULOS DA TERRA

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O Livro Dois da trilogia A Honra do Clã — Os Tentáculos da Terra — já se encontra em processo de edição. Conta com o prefácio escrito pelo brilhante escritor, poeta e dramaturgo Esechias Araújo Lima*, autor premiado, dotado de raríssima sensibilidade artística, que, gentilmente, brinda o autor e, naturalmente, os leitores, com uma pérola: um texto que extrai os pontos essenciais da narrativa e apresenta o livro com a beleza que só pode ser traduzida pelos grandes poetas.

A sensibilidade do prefaciador já nos coloca inteiros dentro da narrativa, fazendo com que o leitor se sinta, de antemão, parte ativa da história que se desenrola nas páginas seguintes. O texto de Esechias é uma porta de entrada particularmente bela, intensa, vibrante e apaixonada, da qual iremos compartilhar, a seguir, alguns trechos, deixando, claro, a totalidade do prefácio para que o(a) leitor(a) saboreie ao tomar o livro nas mãos para iniciar a leitura (certo de que, mais de uma vez, voltará ao prefácio). Aproveite:

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“Num diapasão singular, os relâmpagos poéticos vão iluminando parágrafos, páginas, enfim, todo o livro, com o aguçado traquejo do romancista para auscultar a sensibilidade do leitor ao tecido lírico e lhe superar as expectativas, prosseguindo, com uma despretensiosa leveza, a tessitura de uma obra que inebria o leitor. Assim, em meio à luta para contornar as agruras dos pântanos, a poesia aflora num viés prosaico (aqui, de prosa mesmo) com tinintes trovejos de facões como se fossem relâmpagos de aço cegando os ares entrecortados de gemidos: ‘O facão de Yarima dançava a dança da morte… era um raio cortando o ar…’ E é com esse mesmo lirismo que descreve uma paradoxal cena em que a morte e a poesia chegam ao mesmo estuário: o corpo tombado do guerreiro Turmalina, no momento em que a espada do oponente lhe trespassa o peito. Numa belíssima e derradeira alucinação, o moribundo via ‘… o sol brilhando sobre a grama depois da chuva, sua sagração como guerreiro, o afago da mulher amada, a primeira caçada com o primogênito, a eleição como (…), a espada saindo do seu corpo e a escuridão.’ Mais adiante, ao descrever uma cidade, outro lampejo poético em ‘Suas ruas forradas por pedras azuladas, o ruído do cascalho brilhante sob os pés, as casas coloridas, as vidraças de todas as cores…’”

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“Dissecar uma obra literária não é tarefa fácil, ademais se se trata de um trabalho desenhado com o esmero de quem esculpe um Davi, ou pinta uma Monalisa, vindo das digitais de um autor premiado como Dutsen. Seria fruto de transpiração, não fossem as pinceladas de genialidade com que ele pinta cada cena e com que trata de assuntos — mesmo para os dias de hoje — tão sensíveis, muito mais ainda porque enquadrados no retalho do tempo em que se desenrolam os conflitos. Há, portanto, o concurso da inspiração em harmonioso arremate.”

“As construções frasais não se limitam ao campo do pendor estético num texto em prosa. Não se trata de texto onde a preocupação seja um trivial arranque lúdico para regalo do leitor. Muito mais que esta função — tão bem registrada na poesia que permeia seus textos —, o autor explora, com muita propriedade, a função Pragmática da Literatura, fugindo da tentação de fazer a arte pela arte, mas uma literatura engajada, de denúncia, de crítica, que aponta mazelas sociais, preconceitos, exortando todos a uma leitura reflexiva de mundo, expondo atitudes responsáveis pelas dores humanas, pelas mazelas sociais. Neste livro, várias passagens nos remetem a isso. O escritor dá o devido valor ao papel da mulher, apontando-lhe atribuições fundamentais na sociedade. No episódio da luta entre Barahián — a guerreira Bravacosta — e o guerreiro Alfonsín, — Tomm — o autor lança, por terra, o mito da fragilidade feminina.”

“Ainda no âmbito da crítica social, destacam-se situações de denúncia quando Leken Asiri, na Festa do Vinho em Gidan Sarki, presencia as comemorações dos milionários e políticos no Palácio de Milorne onde os dois abismos se confrontam. De um lado, a praça apinhada de homens e mulheres se fartando nababescamente; do outro, crianças famintas assistiam a tudo. Os olhos da menina descalça admiravam aquela fartura. A infância miserável de Leken Asiri toma-lhe o pensamento, juntamente com a certeza de que ‘seus filhos estariam bem alimentados àquela hora’. Aí, acontece uma das cenas mais pungentes do livro: a menina de trança lhe estende um pedaço do bolo que ele lhe houvera dado. Ele aceita, senta-se com eles na calçada e saboreia a guloseima.”

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“Até ao pisar a melindrosa lavoura da sensualidade, N. O. C. Dutsen o faz de uma forma sutil, elegante, transcendente, sem erotismos baratos ou apelação sexual.  É poético o encontro entre o jovem Rempt Perengondén e a sacerdotisa-mor. Não conteve todo o vigor da sua juventude. Ao se deparar com aquela mulher que, embora com idade de sua mãe, lhe acendera todos os ímpetos, perdeu o controle sobre o corpo. E ela, ante o pedido de desculpas do jovem pelo atrevimento do desejo, assegura-lhe que ele é um ‘perfeito cavalheiro’, e se afasta enquanto o jovem observa-lhes ‘… as nádegas roliças bamboleando e os cabelos negros molhados caindo-lhe pelas costas’.”

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“Nada é gratuito no livro de Dutsen. Há patente intencionalidade ao tratar de assuntos cruciais, tão presentes hoje. Vale, mais uma vez, evocar Otávio Paz: ‘Aquilo que o homem toca se tinge de intencionalidade’.”

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“Enfim, convém ao leitor fazer um périplo por este livro magnífico, de linguagem escorreita, porém sem rebuscamentos, versado numa semiótica precisa. A discreta visita aos porões da alma humana — seus rompantes, dramas e ternuras — expressa uma realidade tão intensamente palpável, que não tem feitio de ficção. É a arte a permear a vida. E como é necessária essa intromissão!  Afinal, Ferreira Gullar nos assegura que ‘A arte existe porque a vida não basta’.”

Junte-se ao Clã!

*Cronista, contista e poeta, Esechias Araújo Lima é membro da Academia Conquistense de Letras. Escreveu, em parceria com Carlos Jehovah, o AUTO DA GAMELA, publicado pela José Olympio Editora (com prefácio de Rachel de Queiroz). Premiado pela Fundação Assis Chateaubriand com a crônica A Viuvez da Palavra, sobre Carlos Drummond. Autor de várias outras obras, inclusive, para teatro.

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